domingo, 19 de junho de 2016

Admirável Mundo Novo: há 75 anos no Brasil, tão atual quanto antigamente


Completam-se, em 2016, os 75 anos da primeira edição brasileira (1941) de Admirável Mundo Novo, principal obra do escritor e visionário britânico Aldous Huxley, publicada inicialmente na Inglaterra, em 1931. E embora escrito há mais de oito décadas, o livro continua surpreendendo com sua atualidade.

Imagine-se em um mundo perfeito, em que as pessoas sejam felizes e despreocupadas com que se passa à sua volta (cá entre nós, estamos precisando um pouco disso ultimamente). Nada de estresse, nada de confusões, nada de instabilidades, nada que possa tomar seu precioso tempo — já que tempo é dinheiro, e dinheiro não se joga fora. Parece bom, não é mesmo? Agora, imagine que a sua única opção é a de ser feliz e despreocupado, embora consciente do que se passa a seu redor. Você é obrigado a estar permanentemente alegre. Esta é "a sociedade perfeita", sociedades perfeitas não admitem pessoas infelizes. Creio que não seja mais tão bom quanto lhe parecia há pouco.

A famosa distopia de Huxley nos apresenta essa "sociedade perfeita", na qual todos vivem eternamente felizes e satisfeitos com a vida. Nela, as pessoas passam a ser fabricadas em centros de inseminação artificial e divididas em castas, hierarquizadas cada qual com suas capacidades, condicionamentos e futuros determinados. Cada qual com sua posição social e função a exercer no grupo. Aqueles mais bem aptos serão os que ocuparão os melhores cargos e que comandarão a sociedade, a fim de manter a ordem estabelecida. Aos menos aptos, cabem os serviços árduos e maçantes, realizados sem protestos, já que eles são preparados exclusivamente para este fim. As castas inferiores sofrem processos intensos de hipnopedia (aprendizado durante o sono) e retardo mental, proporcionais à sua posição, para que todos os setores da economia sejam supridos, mesmo aqueles que uma pessoa "preparada" dificilmente topariam ocupar. E, é claro, com isso, eles não podem reclamar de sua condição. Em casos de emergência, há o "soma", comprimido que faz a pessoa esquecer de seus problemas, a partir de alucinações. Assim, o governo é capaz de controlar a vida das pessoas antes mesmo de seu nascimento e então sustentar uma sociedade estável e eternamente feliz.

A estabilidade seria completa, contudo os membros da casta alfa, a mais desenvolvida mental e fisicamente, são capazes de fazer aquilo que os outros não podem — questionar, pensar. O ato de pensar, inclusive, é inaceitável nas castas inferiores, que são ensinadas a partir da hipnopedia e do condicionamento pavloviano que ler e refletir é condenável. Isso não o é para os alfas. Graças a isso, um desses sujeitos passa a se questionar se essa é a sociedade perfeita que lhes é dita. Ele foge de sua minoridade, deixa de lado a felicidade eterna e passa a incomodar o governo. Este é, basicamente, o enredo do livro de Huxley.

O Admirável Mundo Novo sustenta-se a partir da minoridade de seus membros. O governo exerce a tutela sobre cada ser humano desde quando fabricado nos centros de incubação até o momento da morte. Assim, ele consegue fazer com que os habitantes ajam da maneira que melhor lhe agrade. As pessoas não conseguem alcançar o esclarecimento e, consequentemente, não podem se livrar dessa realidade perturbadora. Para Kant, o homem só é capaz de alcançar o esclarecimento a partir do momento que alcança sua maioridade, libertando-se das amarras que lhe prendem à tutela de uma instituição. Nessa sociedade perfeita, mesmo os que conseguem escapar do domínio não podem fazer uso público de sua razão, pois a influência do governo sobre os outros membros é tão forte, que eles seriam incapazes de compreender as divergências apresentadas. Isso fica claro quando se chocam a civilização londrina, onde se passa o enredo do livro, e o personagem John, vindo de uma reserva indígena, que ainda mantém os valores da sociedade anterior à essa revolução ocorrida na forma de se viver. Os moradores de Londres são incapazes de aceitar o modo de vida do "selvagem", tido por alguns como hilário, por outros como chocante.

Inevitavelmente, Admirável Mundo Novo nos faz comparar a influência do governo do livro, que faz com que o homem viva para satisfazer seus prazeres e sua felicidade, com o poder de convencimento da propaganda. Lembre-se: a obra foi publicada antes da chegada de Hitler ao poder na Alemanha. A propaganda política nazista é até hoje considerada a mais bem sucedida em sua missão de persuadir o povo. O próprio Hitler escreveu em seu polêmico Mein Kampf que "a propaganda política busca imbuir o povo, como um todo, com uma doutrina... A propaganda para o público em geral funciona a partir do ponto de vista de uma ideia, e o prepara para quando da vitória daquela opinião". A propaganda busca rebaixar as pessoas em uma minoridade, na qual o objetivo delas é o de buscar o prazer e a felicidade a partir do que lhes é oferecido. Em Admirável Mundo Novo, a propaganda começa a ser distribuída bem cedo aos habitantes — a partir da hipnopedia. Durante o sono, as pessoas são submetidas a várias sessões de frases morais. Com isso, o governo "implanta" na mente de cada homem os valores que pretende que cada um deles tenha, tendo em vista sua casta. Afinal, "povo marcado, povo feliz". Já na fase adulta, cada casta tem sua própria fonte de informação, jornais diferentes para mentes diferentes.

Aldous Huxley também faz sua crítica ao fascínio pelo progresso científico. Graças a ele, tornou-se possível fabricar seres humanos, cloná-los e condicioná-los a determinada função social. Novamente, lembre-se: a obra foi publicada nos anos 30. O primeiro nascimento de ser humano produzido a partir de uma fertilização in vitro, método que melhor se assemelha ao que ocorre no livro, ocorreu em 1978. Alguns anos depois, em 1997, nascia a ovelha Dolly, primeiro mamífero clonado com sucesso a partir de uma célula somática adulta. Embora a clonagem humana não tenha avançado como no mundo fictício da obra, a ciência vem nos mostrando que o imaginário de Huxley vem se comprovando. Felizmente, em alguns aspectos o autor errou. Um deles é em relação à hipnopedia como apresentada no livro. O estudo mais recente, do Instituto Weizmann de Ciência (Israel), publicado em 2012, descobriu ser falsa a ideia de que se pode induzir alguma ação ou pensamento a partir de ensinamento verbal, como na exposição a frases morais durante o sono. Entretanto, o mesmo estudo mostrou que induções não-verbais, como o reconhecimento de odores, é capaz de surtir efeito.

Toda a construção dessa sociedade imaginária gera uma preocupação crescente no leitor a cada página. O autor consegue nos convencer de que o mundo por ele imaginado pode sim ser real. Huxley não escreve sobre criaturas sobrenaturais, universos paralelos ou robôs dominando o planeta; ele escreve sobre seres humanos, vivendo em uma ordem estabelecida a partir de avanços por eles mesmos alcançados a partir da ciência (não só na ficção, como no mundo real também!). E se não tomarmos cuidado, o mundo como conhecemos hoje pode se tornar um Admirável Mundo Novo.